Por
DEBORAH
COLKER
Em 21 de agosto de 2009, nasceu meu primeiro neto, Theo.
Nasceu com uma mutação genética, uma doença rara, da qual eu nunca tinha ouvido falar: epidermólise bolhosa.
Aos poucos, fomos percebendo a crueldade da doença e que ela não tem cura. A minha reação foi de indignação, incompreensão, revolta. A indignação me levou a buscar a ciência e lutar contra a discriminação. Fui aprendendo que meu grande inimigo é a ignorância, e meu maior parceiro são as pesquisas genéticas e científicas.
Nessa aventura encontrei esperança, inteligência e a certeza de que um país que não investe em ciência não investe no seu presente nem no seu futuro. Uma nação sem ciência é uma nação sem transformação. Paralelamente a isso, senti como a ignorância humana é revoltante: o preconceito, a falsa normalidade, a falta de compaixão, a intolerância. Era preciso aceitar, aprender a aceitar e se aproximar da dor do outro.
Nessa travessia encontrei famílias, crianças, verdadeiros heróis. Fui percebendo a força dentro da fragilidade. A cura e a doença estavam juntas, uma dentro da outra. Fui me alimentando da sabedoria dos que viviam à margem, no fio da vida.
Experimentamos pesquisas com células mesenquimais, corremos atrás do CRISPR, fizemos grupos para encontrar pomadas, cremes, uns ajudando os outros. Encontramos cientistas, médicos, pensadores, religiosos. Em 2017, estreamos o espetáculo Cão sem plumas, baseado no poema de João Cabral de Melo Neto. As palavras cabralinas expressavam minha indignação, a contundência desse poema era real e espessa. Elas me ajudaram a construir um corpo-homem-bicho – a tragédia e a riqueza dessas palavras na pele de lama vinda do subterrâneo.
Comecei a perceber que precisava encontrar a cura. A cura do que não tem cura. Eu já sabia que precisava fazer uma ponte entre a fé e a ciência. Entre aceitar e lutar, entre calar e gritar, entre esperar e agir.
No inicio de 2018, Stephen Hawking morreu, e então entendi o que era a cura do que não tem cura. Hawking sofria de ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica), doença extremamente cruel. Quando diagnosticado, os médicos deram a ele mais três anos de vida. Ele viveu mais cinquenta, criativos.
Passei a procurar histórias antigas. Nilton Bonder, como bom rabino, é um ótimo contador de histórias. Lemos muitas lindas. Mas acabei me fascinando por uma contada pelo coreógrafo baiano Zebrinha. É a história de Obaluaê, orixá da doença e da cura, da rejeição e da adoção. As feridas se transformando em pipoca é lindo demais.
Desde o início dos ensaios, João Elias me disse para ler os salmos de Davi associados a Cura.
Entendi a importância do silencio na cura.
Jesus foi o homem que trouxe o amor para a nossa civilização, o homem símbolo da cura.
Unir o silêncio, o andar sobre as águas de Jesus e os salmos seria a transcendência no movimento.
Só Leonard Cohen poderia ter uma canção que reconhece a morte. O poeta da vida e da morte. Estar pronto para a grande cura: “Hineni, eis-me aqui, my Lord”.
Percebi que a fé e a ciência andam juntas em todas as culturas e fui encontrando meus personagens dessa saga.
Obaluaê, Leonard Cohen, Stephen Hawking, índigenas, africanos, judeus, árabes, raros e especiais. As histórias, as canções, a poesia, a ciência e a gratidão de poder me tornar uma pessoa melhor.
Cura não é sobre o Theo, mas sobre o que o nascimento do Theo causou em mim.
Eu precisava terminar o espetáculo com o meu antídoto à crueldade: nunca perder a alegria. E agradecer por poder fazer parte dessa grande festa.